quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Série: microtexto (II)



Balada.

Ele chegou feliz da vida. Recebera quatro entradas gratuitas para uma balada na casa de show mais famosa da cidade (boate chique e da moda de então). Pegou o carro do primo emprestado e convidou um amigo para uma noite de diversão. Claro, não esqueceu a recém-namorada!
E lá foram os três para a boate mais famosa da cidade, curtir uma noite de bacana, igualzinho àqueles que se divertem rotineiramente, graças ao poder do capital. Chegaram cedo. Quase ninguém presente, ainda. Isso deu certo ar de importância aos três, visto que concentrou maior atenção por parte dos garçons e garçonetes do ambiente. Dinheiro farto. Salário do mês no bolso.
A bebida escolhida para começar os trabalhos foi a caipirosca: mistura de vodca, gelo, limão e açúcar. A danada bem gelada e batida ferve o juízo do ‘cabra’ de tanto tomar. O gosto é sem igual!
Lá pras tantas, depois de várias doses, os efeitos começam a ficar incalculáveis. Hora de sair um pouco do ambiente fechado e com ar condicionado, ir à varanda, observar o trânsito e sentir a brisa que vem de longe: respirar.
Portas de vidro!
Portas de vidro – grosso, temperado - são bonitas e perigosas. Ao menos depois de muitas caipiroscas. O cálculo ao abrir uma das portas deve ser meticulosamente avaliado, sob o risco de ocorrerem pequenos acidentes. Ainda mais quando se tenta ser bacana, puxando fortemente a maçaneta para deixar a porta vir e passar ao seu lado. Porém, se o cálculo for errado, a porta poderá esbarrar na testa do sujeito embriagado. E foi isso que aconteceu.
Bom, mas quem se embriaga perde certas habilidades e sensibilidades. Reflexos deixam sua apuração na primeira dose de vodca, por exemplo. E, do alto da varanda, o ar fresco que vem do mar torna-se gélido.
O sangue escorre testa abaixo (corte provocado pela perigosa porta) e ensopa o peito sem que o elegante bêbado se dê conta do fato. Até que ele resolve jogar um charme para a garçonete bonita e é retribuído com um grito de horror!
- Aaaaahhhhhhhhh! Meu Deus, o que é isso?
- Isso o quê, querida?
- Seu rosto!
- Que tem?
- Sangue!!!
Então, leva-se a mão ao rosto e ela volta encharcada de sangue (e álcool).
Corre-se ao lavabo. Todos te olham assustadamente. O amigo, bêbado também, pergunta quem foi o sujeito de peia que te bateu para que ele vá lá se vingar da agressão. A namorada enlouquece. A cana evapora do cérebro (em parte).
Enfim, rosto lavado, sangue estancado, segue a noite e a bebedeira! Agora, a camisa tem uma coloração extra, em vermelho, especialmente escorrida com a graça da boa bebida inconsequente.
Toca o barco! Toca a noite pra frente! Desce caipirosca! Desaparece a namorada! Some o amigo! Tudo gira! A música é ensurdecedora! Ambiente cheio, agora! Tudo é festa! Agitação! Gatas cruzando o espaço!
Até que pontadas obtusas advindas do intestino alertam o meliante que algo está se processando de forma torta em seu organismo. Ô, caipirosca batizada, essa! Putz!
Corrida desesperada ao banheiro masculino onde se localiza a única privada do universo em momento de terror e agonia típica dos desarranjos intestinais latentes. O cidadão se torna o sujeito mais rápido do mundo nestas horas de aflição e pontadas.
Mas, o álcool provoca certas ilusões e distorções ópticas. O cérebro criar imagens inexistentes: como aquela em que se jura que outro sujeito entrou primeiro no boxe da primava e não sai de lá de jeito algum, enquanto se espera numa eternidade agonizante a saída do desgraçado empata-cagada. Quando se resolve invadir o setor da desova, expulsar o sujeitinho a gritos de desespero, no limiar do perigo iminente e irrefreável, percebe-se a maldita ilusão forjada no momento do desespero – ninguém no ambiente! Aquele diabo desapareceu ou nunca existiu?
Abre-se o cinto, desce-se a calça...
Tarde demais! O tempo perdido na espera insólita e ilusória fora crucial para o não ‘contimento’ da avalanche violenta.
Adeus cueca! Pernas enlameadas! Barra da calça melada! Odor permanente! Desgraça!
Nestes momentos, lava-se o que se é possível lavar e como é possível limpar. Mas nunca chega a ser o suficiente. O paliativo é o bastante para se encontrar a namorada sumida, o amigo embriagado, pagar a conta e desaparecer! Como tudo tem seu lado ruim e bom: o ocorrido ajuda na cura imediata da embriaguez.
De uma forma estranha – alívio! Ufa, é só ir-se e pronto. Esquecer a noite.
O problema é quando se chega fora do banheiro, encontra-se a namorada (daqui a pouco, ex.) cercada pelos seguranças e pelo gerente, ao lado de um playboy bonitão, sendo acusada de praticar sexo no banheiro feminino (ao lado de onde o camarada passava por momentos angustiantes ao vitimar-se de uma diarreia avassaladora).
- Qual o problema?
- O senhor conhece esta moça?
- Sim!
- Estamos chamando a polícia porque ela estava transando com esse rapaz no banheiro feminino.
- O quê?
- Isso que o senhor ouviu!
- É mentira – grita a safada!
- É verdade. Tenho provas testemunhais de clientes e seguranças.
Junta uma multidão ao redor. Gente confirmando e rindo. Raiva e vergonha! E certa ironia tragicômica no pensamento pelo fato do problema intestinal recém-ocorrido, diante de um problema mais vexatório ainda.
- Fulana, nosso namoro está acabado. Seu gerente, libere a piranha e o pé de lã.
Depois de muita conversa e muita argumentação, o gerente libera-os. Agradece a postura e a elegância quanto ao trato do assunto e diz que “cagado-corno-educado” será sempre bem-vindo à boate, mas a moça não! Proibida de entrar no ambiente outra vez. O ‘cabra de peia’, desaparece. A safada chora lágrimas de crocodilo. A catinga emana no ar, enquanto o gerente elogia a postura do corno fedido.
Mas, tudo resolvido: bunda semilimpa, namoro acabado, conta paga, embriaguez curada, pessoas educadas que sentem o odor forte, mas não reclamam do exalador! Hora de sumir pra nunca mais voltar aquele lugar.
- Vamos embora, ainda vou ser gentil e te deixar em casa. Mas, nunca mais sequer olhe para o meu lado e nem fale comigo!
Um minuto: cadê o amigo?
- Gerente?
- Sim, pois não!
- Eu vim acompanhado de um amigo também.
- É um sujeito cabeludo e barbudo, pergunta um segurança?
- Isso.
- Na confusão, esqueci-me de avisar, mas tem um homem desmaiado na pia do banheiro masculino, no primeiro andar!
- Puta que o pariu!!! Que merda de noite foi essa?
Grita o pobre rapaz. Que mais poderia acontecer? Todos se assustam e olham aterrorizados com ele e com pena, talvez. Mas, certamente, loucos que ele fosse embora e levasse consigo aquele problema constrangedor.
- Calma, senhor! Meus seguranças vão buscá-lo! Não se preocupe com a conta dele.
Sobem dois seguranças e trazem-no carregado. Aquele projeto de gente que tem aparência de morto está num estado para além de deplorável: todo babado, vomitado, sujo, imundo, bêbado e roncando...
Mas, é seu amigo, porra! Fazer o quê?
- Os senhores poderiam me ajudar a pô-lo no carro?
- Sim, claro!
O infeliz vem inerte. Mas, quando é colocado no banco de trás do automóvel, tem a infeliz graça de vomitar até a alma. Pronto! Noite completa. Balada perfeita. Enquanto a cidade se acomoda na madruga, seguem de volta pra suas casas aqueles três indivíduos desprestigiados, ridicularizados, sub-humanizados naqueles instantes e vilipendiados por doses de caipiroscas agradáveis e irresistíveis, porém traiçoeiras.
Cuidado com suas baladas, cuidado com o que você bebe em boates chiques!



Livro de poesia: Na bacia das almas

NA BACIA DAS ALMAS, O SEGUNDO LIVRO DE POESIA DE VERIDIANO MAIA DOS SANTOS, ABORDA POEMAS SOBRE A CIDADE, SUA CONCRETUDE E SEUS SIMBOLISMOS...